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Seja qual for o resultado do referendo à Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG), no dia 11 de Fevereiro, nada ficará como até aqui. O ministro da Saúde, Correia de Campos, quer acabar com o aborto ilegal custe o que custar e para o fazer nem vai precisar de mexer na lei.
A estratégia é simples e já está bem planeada: fazer cumprir na íntegra a legislação em vigor, que uma eventual vitória do ‘não’ na consulta popular em nada alterará.
Na prática, a premissa que permite à mulher interromper a gestação até às 12 semanas “para evitar perigo de grave e duradoura lesão para a saúde psíquica” vai deixar de ser possível apenas no papel. O legislador entendeu que o risco psíquico era motivo suficiente para a interrupção da gravidez sem punição, mas o facto é que até hoje não foi reconhecido nas unidades públicas de saúde. E é aqui que reside a principal diferença entre Portugal e Espanha e a razão pela qual é possível abortar a pedido da mulher do outro lado da fronteira.
O processo torna-se ainda mais fácil porque o clínico que atesta a perturbação psíquica da gravidez indesejada não a pode interromper. Ou seja, o nível de responsabilidade é partilhado: o profissional que assina o atestado médico não tem poder para praticar o aborto e o clínico que o fará cumpre apenas uma indicação médica.
Em Espanha, o sector privado - a que portuguesas com meios têm recorrido nos últimos anos - é mais permissivo do que o público e ainda tem a vantagem de assegurar uma resposta atempada. Por cá, o ministro quer fazer o mesmo, mas com uma diferença: os abortos em clínicas privadas vão ter comparticipação da Segurança Social, como está previsto desde 2004.
Na Resolução da Assembleia da República sobre as ‘medidas de prevenção no âmbito da Interrupção Voluntária da Gravidez’ consta que “em caso de impossibilidade, o hospital deve garantir o imediato acesso a outro estabelecimento público ou privado, suportando o Serviço Nacional de Saúde (SNS) os respectivos encargos”.
Correia de Campos já foi diversas vezes alertado para a incapacidade de resposta do SNS - os médicos são poucos e a prioridade continuará a ser dada aos casos urgentes - e sabe que tem de ‘abrir os cordões à bolsa’ para concretizar o seu objectivo.
O licenciamento das clínicas privadas será, por isso, mais célere e as administrações dos hospitais serão convidadas a criarem pequenas unidades de IVG. Estas instalações poderão funcionar numa ala do hospital, numa estrutura contígua ou mesmo nos arredores do edifício principal. A sua missão é separar a saúde materna ou apenas o aborto das demais valências de cuidados médicos.
O ministro diz que a inspiração vem do exemplo francês e que será uma forma de permitir maior privacidade às mulheres que interrompem a gravidez, pois o anonimato é impossível: para aceder aos cuidados do SNS a mulher terá sempre de, pelo menos, dizer quem é e onde reside.
Um eventual ‘chumbo’ da despenalização do aborto na consulta popular também terá consequências em sede parlamentar: em entrevista ao Expresso, Zita Seabra anunciou já que tenciona apresentar um projecto de lei com o propósito de acabar com as penas de prisão para as mulheres que recorram à IVG.
Na bancada socialista, Maria do Rosário Carneiro e Teresa Venda, autoras de um projecto de lei que prevê a suspensão dos processos-crime contra mulheres que recorreram à IVG, voltarão a requerer o seu debate. Reconhecendo que há uma multiplicidade de situações que leva as mulheres a praticarem aborto e que a sociedade é co-responsável pela ausência de alternativas, as duas deputadas independentes defendem que não haja investigação policial nem instauração de processo para julgamento porque isso significa uma “insuportável devassa da intimidade das mulheres”, explica-nos a deputada Rosário Carneiro.
Recorde-se que o documento - entregue no início desta legislatura - foi objecto de “discussão sumária” no grupo parlamentar socialista, mas não obteve o apoio da direcção da bancada, mais interessada em viabilizar o referendo. Discordando da decisão, as deputadas recorreram ao presidente da AR, Jaime Gama, para agendar o projecto. Debatido em conferência de líderes parlamentares, não logrou obter consenso para avançar para o Plenário.


Texto: Vera Lúcia Arreigoso

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